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segunda-feira, 16 de maio de 2011

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Contra Capa do disco "Os Afro-Sambas", de Baden Powell e Vinícius de Moraes (autor do texto)


Transcrição da contra capa dos Afro Sambas.

"Quando há quatro anos atrás, Baden Powell e eu começamos a compor pra valer (ficamos praticamente sem sair durante três meses. "Samba em Prelúdio", "Só por amor", "Bom dia, Amigo", "Labareda" e "O Astronauta" são dessa safra), uma das coisas que mais o fascinava era ouvir um disco que meu amigo Carlos Coquejo me trouxera da Bahia, uma gravação ao vivo de sambas de roda e cultos de candomblé com várias exibições de berimbau em suas diversas modalidades rítmicas. Nesse meio tempo, Baden deu um pulo a Salvador, onde teve a oportunidade de ver e ouvir candomblé e conviver com gente "por dentro" do assunto. A Bahia fez-lhe impressão enorme. Foi quando saiu nosso samba "Berimbau", que só por ser demais conhecido não consta desta série, embora a ela pertença, e o "Samba da Benção", de balanço nitidamente baiano.

Mas mesmo antes de "Berimbau", já Baden me catalisara para compor o "Canto do Caboclo Pedra Preta" aqui representado. O samba foi feito na hora, como se diz - a música e a letra da segunda parte buscando dar sentido ao canto original do "caboclo" - "Olô, pandeiro, olô viola", assim mesmo, com a vogal e no grave. Pois quando o "caboclo" Pedra Preta nos dizia que o "pandeiro não quer que eu sambe aqui, viola não quer que eu vá embora", parecia nos querer ele dar as coordenadas desse eterno conflito do amor e do sexo, cujo bandarilheiro e o ciúme em que o elemento "macho" (o pandeiro) repudia vivamente a entrada em cena do "caboclo" Pedra Preta (o "outro"), mas já aqui com a conotação também da divindade, de Pai-de-Santo, capaz de arrastar o elemento fêmea (a viola) para o mundo subterrâneo da magia negra e do sexo místico. Mas Pedra Preta não os concilia a não fugirem ao próprio destino - pandeiro tem que "pandeirar", viola tem que "violar". E quando na hora mágica do "caboclo", o galo canta fora de hora, o pandeiro parte, perdida que está para ele a partida.

A viola se integrará na missa negra e, doravante, também ela será sacerdotisa do culto. Esta é uma das interpretações que, uma vez terminado, o samba nos provocou. Mas a medida que ele se impunha pelo mistério do seu contexto, outros foram aparecendo. Pedra Preta seria, ao mesmo tempo, o elemento perturbador do eterno casal em conflito, cujo conflito é a essência mesma da vida em sua dinâmica. Só sei que me deixei completamente envolver pela sábia magia do candomblé baiano e durante meses vivemos em contato com o seu grave e obscuro mundo. Data de então, também, o "Canto de Yemanjá" em que, parece, Baden atingiu uma beleza poucas vezes alcançada. O canto inicial, com que a rainha do mar anuncia a sua presença e através da qual cativa e atrai os homens para a boda sem sexo (pois Iemanjá, neta de Oxum, sendo sereira tem corpo de peixe dos quadris para baixo) possui um tal mistério que até hoje não posso ouví-lo sem me perturbar fundamente. Dulce Nunes interpretou-o a perfeição, com uma voz abstrata, como que vinda de fora do além, do mágico mundo marítimo de Iemanjá.

Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal. Tirante algumas experiências características - como fez, por exemplo, meu querido e saudoso amigo Jayme Ovalle com os "Três Pontos de Santo" - nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica como por exemplo esse "duende da floresta afro-brasileira de sons" como eu disse de Baden Powell numa frase feliz. É esta, sem dúvida, a nova música brasileira e a última resposta que da o Brasil - esmagadora - à mediocridade musical em que se atola o mundo. E não digo na vaidade de ser letrista dos mesmos; digo-o em consideração a sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve: um tal encantamento em alguns que não há como sucumbir à sua sedução, partir em direção ao seu patético apelo. Notem também a estrutura rítmica puramente candomblé do "Canto de Xangô", em que Xangô agodô, o orixá velho, ao mesmo tempo que canta parece advertir Xangô jovem sobre a necessidade de amar sem medo, pois o jovem, após o primeiro fracasso amoroso, começa a adquirir uma certa reserva com relação ao amor. Em "Bocochê" (Segredo), volta ao tema de Iemanjá, já aqui tratado ritmicamente à maneira do Candomblé. No "Canto de Ossanha", Baden, ao meu ver, atingiu o máximo de profundidade em sua carreira de compositor. É um samba "advertente" e muito revolucionário em seu contexto. Um samba positivo, que não se recusa a enfrentar os problemas do amor e da vida. Em "Tempo de Amor", que é de todos o que menos se relaciona com o ritmo e a temática do candomblé, a estrutura do samba e sem embargo, autênticamente negra - o que justifica sua inclusão neste LP.

Quanto Roberto Quartin nos procurou, interessado em gravar esta série, combinamos com o jovem e talentoso produtor que o disco seria feito com um máximo de liberdade criadora e um mínimo de interesse comercial. Não nos interessava fazer um disco "bem feito" do ponto de vista artesanal, mas sim espontâneo, buscando uma transmissão simples do queriam nossos sambas dizer. Gravaríamos, inclusive, faixas mais longas do que gostam os homens de rádio e, conseqüentemente, a maior parte dos nossos intérpretes. E embora não sejamos cantores no sentido profissional da palavra, preferimos gravá-las nós mesmos a entregá-las a cantores e cantoras que realmente distorcem a melodia e o ritmo das canções em benefício de seu modo comercial de cantar ou de suas deformações profissionais adquiridas no sucesso efêmero junto a um público menos exigente. Assim estamos certos de que pelo menos gravamos uma matriz simples e correta, sem modismos nem sofisticações. E não foi outra razão pela qual escolhemos uma equipe onde - apesar de haver um conjunto vocal profissional da qualidade do "Quarteto em Cy" e uma cantora que se vai firmando cada vez mais como Dulce Nunes - (ouçam o "Lamento de Exu") a obediência a esse princípio foi absoluta. Nem as Baianinhas nem Dulce são "botadoras de banca" e cooperaram com toda a dedicação na feitura deste LP dentro do espírito que desejávamos Baden, Roberto Quartin e eu. Para desprofissionalizar ao máximo a gravação criamos mesmo o que passou a ser chamado o "Coro da Amizade"; amigas e amigos nossos escolhidos a dedo que vinham à gravação e sob a orientação e regência do maestro Guerra Peixe - criador de todos estes notáveis arranjos que aqui estão - mandavam a sua brasa no coro. Para se ter uma idéia do critério adotado, havia uma jovem tabelioa, um broto, bonito e inteligente que é, além do mais, filha do meu amigo Fernando Sabino, Eliana Sabino; a dançarina e estrela de teatro e cinema Betty Faria, cuja voz em solo sensual se ouve dando-me as respostas na primeira faixa, o "Canto de Ossanha"; minha amiga Tereza Drummond estara engolindo o violão; minha mulher Nelita, que embora tenha um fio de voz, compareceu com a sua graça e entusiasmo; o Dr. Cesar Augusto Parga Rodrigues, psiquiatra que toca um bom pianinho em casa, quando arranja uma batina, toca órgão nas Igrejas, figura de grande simpatia, mas a quem depois de um convívio maior no calor humano, alcoólico e atmosférico dos dias de gravação (ela realizou-se na canícula de janeiro), eu não sei se entregaria a minha "cuca" para analisar mormente depois de vê-lo regendo o coro metido no avental médico com que chegara do plantão; e finalmente Otto Gonçalves Filho, o popular Gaúcho, figura "velosiana", como o chamei, que também faz as suas coisinhas no violão e tem na algibeira uns sambas que irão correr mundo.

Por falar em figura velosiana, cumpre-me explicar uma coisa: O samba "Tempo de Amor" está sendo popularmente chamado de "Samba do Veloso". A razão é simples; é que Baden compôs no já famoso Bar Montenegro, também chamado o "Veloso", ali na esquina da Prudente e Moraes e Montenegro, em Copacabana.

O mesmo, aliás, onde há uns cinco anos atrás, Antônio Carlos Jobim e eu vimos passar toda linda e cheia de graça a "Garota de Ipanema".

Rio, fevereiro de 1966.
Vinícius de Moraes. "

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